Dissociação Coexistente
André Miagui (São Paulo, 1979)
Dissociação coexistente nos impele a interrogar a condição humana que, em tempos de crise, nos afasta da consciência, hipnotizando-nos no que se refere ao sentido da natureza humana, à vulnerabilidade diante da vida, à importância da solidariedade social, sugerindo a ideia que as culturas que vieram antes dissolvem-se e apagam-se na contemporaneidade, principalmente, por dois motivos situados pelas reflexões de André Miagui, o uso da tecnologia, em sistemas de tentativa e erro, nos afasta das imagens inquietantes que impregnam nosso imaginário; por outro lado, uma cegueira metafórica nos interpela como cegueira moral e emocional, afligindo a sociedade atual, retratada no livro de Saramago, Ensaio sobre a cegueira, o qual, também, nos move a escrever essas ideias.
O diálogo estético de André inicia-se com algumas apropriações: em Zeitgeist, de pinturas da História da Arte, renascentistas e modernas como, a Moça com a Brinco de Pérola, de Johannes Vermeer (1632-1675) (Part. 5), O Homem com Turbante Vermelho, de Jan Van Eyck (1390-1441) (Part. 7), ou As irmãs, de Abbott H Trayer (1849-1921) (Part. 11). Toma, do termo alemão Zeitgeist, o significado de “espírito do tempo”, conceito conhecido pela obra de Hegel, em Filosofia da História (1837). Raízes do Brasil (1936), de Sergio Buarque de Holanda, oferece o título da segunda série, cujas cinco pinturas foram motivadas por um recorte do acervo de fotos do Museu Nacional – Rio de Janeiro, cuja temática volta-se para imagens de escravos libertos em funções na nova sociedade.
O que geram essas apropriações?
A subjetividade poética do artista, o corpo no trabalho do fazer pictórico e procedimentos esmerados entrelaçam-se e geram a presente mostra: Dissociação Coexistente.
Part. 5 re-apresenta a obra de Vermeer, Moça com o Brinco de Pérola. O olhar da personagem, lançado através de uma torção do rosto em direção ao observador, que a surpreende, lhe é negado duas vezes: primeiro, pela placa-mãe que a impede de ver e em segundo, por interromper um possível diálogo entre os dois seres, a moça e o transeunte que adentra seu espaço-tempo.
É isso que André está sublinhando em Zeitgeist:- o uso sem consciência da tecnologia que provoca-nos com um estado de cegueira metafórica, nos impossibilitando de sermos afetados por projetos futuros, numa dissolução da dialética entre aquele que vem de fora e um passado sem olhar, sem intenção.
Em Raízes do Brasil, 2024, André Miagui dialoga com as cegueiras paradigmáticas da nossa colonização, e identifica uma simbologia dos discursos controladores de necessidades básicas, sociais e educacionais, e da alienação que nossa sociedade brasileira ainda perpetua.
Reyes de La Baura, é uma apresentação dramática da função do escravo negro “liberto”, portando dejetos dos senhores de engenho. Ao fundo, a moeda portuguesa de cabeça para baixo, reproduzida inúmeras vezes. E, por fim, o negro, na sociedade atual no seu dever de Gari, trata a sujeira, a impureza, o entulho, os detritos, enfim, a sobra deixada na rua pela sociedade sem empatia.
Carmen S. G. Aranha